quarta-feira, 27 de maio de 2015

No olho da Rua: relato afetivo sobre o espetáculo Viveiros do Boca de Cena

Por: Letícia Andrade (leticiaandrade2000@yahoo.com.br)
Fotografias: Aquiles Castro (aquilescastrophoto@yahoo.com)


Viveiros, do grupo Boca de Cena 2015



Com afeto e olhar aberto ao futuro, quero descrever um pouco do que senti ao assistir Viveiros, do jovem grupo Boca de Cena. O experimento, laboratório ou espetáculo lança questões sobre o universo urbano da periferia. Vi o trabalho no dia 16 de maio de 2015, num sábado, no bairro Bugio, de Aracaju. Quando comecei ouvir os relatos sobre histórias do bairro, veio o desejo de recordar do meu próprio bairro onde cresci, e comecei a me lembrar do lugar onde vivi e que também tive meus medos e minhas esperanças, tais como em Viveiros, que apresenta histórias universais, recolhidas do dia-a-dia do Bairro do Bugio.


Viveiros, do grupo Boca de Cena 2015


A base de processo de Viveiros do Boca de Cena, segundo os próprios integrantes, foi a criação de um texto baseado em caminhadas dos atores e entrevistas com moradores locais, coordenada por desejos e propostas dos condutores do trabalho. Tal processo me inspira lembrar o trabalho que compartilhei com a Cenógrafa Ines Linke, que trabalhei em algumas montagens em Belo Horizonte e quando ministramos a Oficina Zona de Ficção, em 2009. Ela me apresentou naquela época, o que era a psicogeografia, inspirada nas ações dos Situacionistas da década de 60, de Guy Debord. 



A psicogeografia é uma ação de roteiro, passagem caminhada pela cidade, de modo afetivo e subjetivo, que anseia cartografar as diferentes ambiências psíquicas provocadas pelas deambulações urbanas, originadas pelas derivas situacionistas. Tais derivas também se originam, ao longo do século, das inspirações de Charles Baudelaire, com sua flanerie: ação do flâuner, o caminhar desinteressado, desalienante e poético pelos espaços. 


Eu e Ines, minha amiga cenógrafa, realizamos muitas ações de psicogeografia no centro e nos bairros de Belo Horizonte e na cidade de Ouro Preto, ora com alunos, ora com atores em montagens, buscando sempre a paisagem inusitada, misturada às narrativas das pessoas, as pressas, o tédio, tantas ruínas, figuras populares dos lugares, materiais poéticos deixados como lixo e que para nós surgiam como belas telas de atitude política e poética, vomitada pelo próprio caos das cidades.

Voltando ao Viveiros, toda essa sensação de estar nestes ambientes urbanos, populares em intenso conflito social voltaram à tona quando assistia ao experimento do Boca. Da terra vermelha, incômoda, poeirenta, a cena se constrói de um modo belo, contemporâneo e cru. As filas, a violência, o amor ou a falta dele, e a busca das histórias que estão em torno de nós, dentro de nós e ao nosso lado. O duplo sentido na cena onde narram a brincadeira “Homem bateu em minha porta” é um momento de puro soco na boca do estômago. Esse grupo talentoso, ousado, que mantém com luta e gosto sua sede no Bugio, se enlameou – literalmente para mostrar tal realidade. O espaço cênico em passarela – espacialidade tão potente que tenho um afeto como diretora e tanto incentivo nos meus alunos seu uso – foi muito mais que bem utilizado pelos atores, e pelos diretores-condutores. A iluminação sutil, apresentando diversas colorações e a luz abarca com sensibilidade os focos nos atores, soube dar vazão aos ambientes dramáticos, apesar que os vários black-outs poderia ser melhor balanceado. Ao mesmo tempo, pensando alto, os vários apagões devem incomodar mesmo, pois trata-se de uma linguagem fragmentária. Ponto alto para o foco central que utiliza com criatividade a sobra uma roda de bicicleta para a ambientação dramática. Recurso simples, mas de uma maestria artística. Os atores são entregues, autorais, viscerais e trabalhando com a pele exposta e misturada ao barro-argila demostram cruamente as realidades urbanas e familiares das histórias que recolhem da região do Bugio. Os momentos animalescos são primorosos e tão necessários e refletem quanto nós humanos, somos matérias de conflito puro. 

O momento no qual uma história é solicitada para o espectador torna-se um ponto forte, belo, crítico e desafiador para o grupo. Eis que compartilho com eles minha verve narrativa de diálogo com o espectador, tanto como atriz como dramaturga. Mas acredito que é preciso mais tato para trazer este espectador para dentro da cena, mais convite, mais “chega mais”. Isso se consegue com prática, que os atores já estão buscando a cada apresentação. Há momentos nos quais os atores podem respirar mais, sentir e olhar fundo nos olhos do público. Fará bem a ambos.

Sobre o desfecho... como desfechos são capciosos... como artista sempre dúvidas também me surgem, mas para um trabalho tão radical, ousado e fragmentário, um final que deseja religar com o início não é suficiente. Ousem mais, vocês mais que podem, voltem com a história narrada pelo espectador... para onde ela foi? 

Tudo para dizer que me modificaram esses viveiros, me convidaram para bater nas portas dos habitantes do Bugio e pedir abrigo, morada, afeto. Com uma sede linda, um grupo guerreiro, e diversas linguagens em experimentação, o Boca de Cena deve ser aplaudido, sempre. De pé e em cena aberta. Que a lama perdure, que tantas bocas nunca se calem. Vocês já são história.




Viveiros, do grupo Boca de Cena, 2015



Ficha Técnica
Realização: Grupo teatral Boca de Cena
Produção: Rogério Alves
Condutores: Jonathan Rodrigues e Rogério Santos Alves
Oficina de Corpo: Diane Veloso
Fotos: Aquiles Castro
Estudo de Mesa focado em Sartre: Romero Venancio
Concepção de Iluminação: Denys Leão
Atores pesquisadores:
Anne Samara Torres, Carolen Meneses, Felipe Mascarello, Gustavo Floriano e Patricia Brunet

SESSÃO EXTRA de VIVEIROS neste SÁBADO dia 30 de maio de 2015 às 20h Local: sede do grupo Boca de Cena (Informações 79-88055883 ou 98124458), localizada na Rua 04, n° 80, Loteamento Nova Liberdade II, Bugio. Aracaju-Sergipe.

Nenhum comentário:

Postar um comentário